Proibir criança de comer brigadeiro em festa pode ser um exagero perigoso. Está na hora de rever o conceito de que comida é veneno, aponta entrevista da colunista Cristiane Segatto, para a revista Época desta semana que, por seu alto interesse, reproduzimos aqui em nosso portal. Parece ficção, mas a história é real. Uma mãe muito preocupada em garantir que o filho crescesse longe dos perigos do açúcar vigiava o garoto nas festinhas infantis para ter certeza de que ele não comeria chocolate. O menino foi crescendo, assim como a vontade reprimida. O que vocês acham que aconteceu na primeira festa em que ele se viu livre da sombra materna? Comeu todos os brigadeiros que apareceram pela frente. Teve uma dor de barriga para nunca mais esquecer. Nem assim a mãe aprendeu... Esse não é o único episódio de rigor alimentar excessivo que conheço. Recentemente, o filho pequeno de uma amiga disse que tinha uma notícia terrível para dar. A escola havia determinado que, a partir do ano que vem, a cantina só poderá vender pão, se ele for integral. Quase sempre medidas como essa são tomadas com boa intenção. Adultos e escolas querem proteger as crianças da cultura de fast food e de produtos industrializados a que estão excessivamente expostas. A boa intenção se perde quando as restrições descambam para o radicalismo. Isso não é defesa da saúde. É terrorismo nutricional. Essa é definição da engenheira agrônoma e nutricionista Atualmente Sophie estuda a genética de pacientes com transtorno alimentar no laboratório de neurociência do Instituto de Psiquiatria da USP. Incomodada com o excesso de dietas restritivas e de conselhos nutricionais errados que circulam pelas redes sociais e blogs, Sophie decidiu lançar um livro e um site para ajudar as pessoas a fazer as pazes com a comida. No lançamento O peso das dietas – Emagreça de forma sustentável dizendo não às dietas (Editora Sensus), Sophie derruba mitos sobre alimentação e oferece 50 receitas fáceis e dicas práticas para facilitar o dia a dia de quem quer comer melhor – sem neurose. A seguir, um pouco das ideias dessa francesa que lançou uma cruzada pela volta do prazer à mesa. ÉPOCA: Por que a senhora diz que vivemos um terrorismo nutricional? Sophie Deram: É uma constatação não só minha. Há um forte movimento entre os profissionais da nutrição contra a imposição de regras restritivas e totalmente sem sentido. De repente inventam essa onda de cortar glúten, cortar gordura, cortar tudo. Nutrição não é só nutriente – é também comportamento. Se a pessoa come compulsivamente, não adianta fazer dieta. Ela vai fazer tudo certinho no início e depois comer exageradamente para descontar a frustração. Quando estamos em paz com o alimento, comemos de forma saudável. Dietas da moda e excesso de restrições fazem a pessoa viver em guerra com a comida. Isso é o caminho para desenvolver um problema que chamamos de “comer transtornado” ÉPOCA: Isso é diferente dos transtornos alimentares clássicos como anorexia e bulimia? Sophie: Sim. Transtornos alimentares são doenças psiquiátricas que precisam de tratamento multidisciplinar (médicos, nutricionistas, psicólogos etc). O que chamamos de “comer transtornado” não chega a ser uma doença, mas é um comportamento que pode levar ao desenvolvimento de uma doença. O que mais me assustou no tempo em que trabalhei no Ambulatório de Bulimia e Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria da USP foi perceber que quase todas as pacientes haviam feito várias dietas antes de adoecer. Fazer dieta restritiva assusta o cérebro. Ele não percebe a perda de peso como um sucesso de beleza. Percebe-a como uma agressão, um grande perigo. Se as pessoas que fazem sucessivas dietas vão ter anorexia ou outros transtornos alimentares depende da predisposição genética. ÉPOCA: Dietas restritivas contribuem para a epidemia de obesidade? Sophie: Sim. Elas são uma das responsáveis pela epidemia global que estamos vivendo. Vários estudos demonstram, desde 1985, que excesso de restrições faz mal e engorda. Ainda assim todo mundo continua promovendo dietas. Profissionais, celebridades, blogueiros, vizinhas...Precisamos falar alto para a sociedade que esse caminho só vai complicar o estado de quem luta contra a balança. Uma pesquisa rigorosa feita com gêmeos, divulgada em 2012, revelou que aqueles submetidos a dietas engordavam mais no longo prazo. Quanto mais dieta restritiva uma pessoa faz, mais gorda ela fica. ÉPOCA: Por que isso ocorre? Sophie: Passar fome ou eliminar um grupo alimentar inteiro assusta o metabolismo. Cedo ou tarde ele vai tentar se proteger. O carboidrato, por exemplo, é o combustível do corpo. Cortá-lo da dieta faz emagrecer num primeiro momento porque o organismo vai buscar a energia que falta nas reservas de gordura. Só que isso provoca um susto muito grande. A consequência é o excesso de apetite e a necessidade emocional de buscar comida. ÉPOCA: Qual é o problema das dietas sem glúten? Sophie: Uma pessoa pode comer muito bem sem glúten (proteína presente no trigo e em outros cereais). É o caso de quem sofre de doença celíaca. O paciente exclui o glúten da alimentação, o intestino melhora e ele se sente bem. O problema é pregar essas dietas sem glúten com o objetivo de emagrecer. Isso é uma loucura. O trigo faz parte da cultura de vários povos. Se a pessoa deixar de comer tanta coisa gostosa, como pizza, pão, massa, bolo, ela vai emagrecer num primeiro momento. Só que o prazer de comer desaparece. Quem sofre esse terrorismo tende a compensar sempre que tem uma chance. Tudo o que é proibido é mais gostoso. Não há como lutar contra isso. Passa a comer em dobro e, depois, se sente fracassado. O fracasso da dieta não é culpa das pessoas, nem falta de força de vontade. É uma adaptação do cérebro à privação alimentar. Não há como evitá-la a menos que as pessoas fiquem em paz com a comida. ÉPOCA: Muitas famílias e escolas adotam restrições exageradas como um contraponto à cultura de fast food na qual as crianças vivem. Estão erradas? Sophie: Não acho que fast food faz mal. O problema é o consumo habitual dessas coisas. Como de vez em quando. Meus filhos, uma vez por semana mais ou menos. Isso não provoca o efeito devastador instantâneo que as pessoas imaginam. O que mais me interessa hoje em dia é ajudar as crianças e jovens que estão sendo submetidos a esse terrorismo pelas famílias e pelas escolas. Eles estão crescendo com essa mensagem de que o alimento é um potencial veneno. Não podemos tirar tudo radicalmente dessas crianças. Tanta rigidez só assusta. Estudos realizados com crianças de cinco anos mostraram que elas engordam mais se a mãe é do tipo que tenta limitar radicalmente a quantidade do que a criança come. Isso interfere no mecanismo cerebral que controla a saciedade. É preciso ensinar as crianças a comer com responsabilidade. ÉPOCA: As pessoas que seguem suas orientações, principalmente as crianças obesas, conseguem emagrecer? Sophie: O emagrecimento é uma consequência da melhora da saúde. O padrão hoje é subir na balança. Ela é um fiscal. Não deveria ser assim. Quando o paciente e o profissional focam só no peso, olham para a coisa errada. Mais importante que o peso são os dados hormonais, os exames de sangue e outros parâmetros. Se a pessoa tem febre e toma uma aspirina pode acabar com ela. Mas será que resolveu a causa do problema? Algumas pessoas chegam ao meu consultório com uma miragem. Acham que vão perder dez quilos num mês. Acabam se decepcionando. Não sou uma fada. Muita gente vende mágica. Vendo a realidade. Consigo fazer o paciente escutar o próprio corpo. É comprovado que isso emagrece. O comer consciente leva a uma perda de tempo sustentável. O que mais tenho visto é um grande ganho de bem-estar. A perda de peso depende de cada caso. Uma menina de 20 anos que começou a ter compulsão recentemente provavelmente terá um resultado melhor que uma mulher de 50 anos que já perdeu vinte quilos de uma vez em outras ocasiões. Há uma memória metabólica que faz o corpo buscar o peso que tinha antes. O emagrecimento sustentável só ocorre ser for lento e gradual. ÉPOCA: É difícil lidar com os pais no seu consultório? Sophie: Muito. Eles chegam cheios de mitos. Dizem que não pode comer carboidrato à noite, que gordura é veneno, que não se deve beber líquido durante as refeições etc. Tudo errado. As crianças entendem minha mensagem muito melhor. Parece que elas “bebem” as minhas palavras. Dizem: “Viu só, mãe? Se você proibir, vou comer escondido”. Cuidei de uma família interessante. A menina comia chocolate demais e engordava. Até que descobrimos que ela comia tudo o que fosse possível, de uma vez, antes que o irmão adolescente pegasse a caixa e comesse tudo sozinho. Recomendei que a mãe comprasse uma caixa só para a filha. Ela foi percebendo que não precisava comer demais porque o chocolate não ia desaparecer. Funcionou. Ao final do processo, os dois haviam modificado a forma de se relacionar com a comida e estavam mais saudáveis. ÉPOCA: Você acha que criança não deveria ser submetida a dietas? Sophie: Sim. Sou uma ativista contra a dieta em crianças. Uma professora de neurociência me explicou que uma criança submetida a excessivas restrições alimentares fica procurando tanto a comida que deixa de desenvolver outras cognições importantes. Isso é muito grave. Há um risco nisso que defendo. Quando digo não faça dieta, muitos entendem que a gula está liberada. Não é isso. Nutra o seu filho é a minha mensagem. É importante lembrar que crianças muito acima do peso podem ter alterações metabólicas. O médico precisa avaliar a saúde delas. O ideal é que ela passe por um tratamento multidisciplinar. Trabalhei com casos assim no Hospital das Clínicas, em São Paulo. É fundamental mudar o padrão alimentar. Muitas vezes o mais importante é cuidar dos pais. Hoje não existe um tratamento para curar a obesidade. O que funciona melhor é a mudança do comportamento alimentar. |
sábado, 29 de novembro de 2014
ESPECIAL GASTRONOMIA Especialista denuncia terrorismo nutricional
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