Livro conta trajetória dos doces e ensina a prepará-los. Obra sobre confeitaria mundial é do mestre-confeiteiro Angelo Sabatino Perrella. Estamos publicando seis receitas em uma segunda matéria no Qsacada.
Desde menino, uma pergunta sempre passava pela cabeça de Angelo Sabatino Perrella quando ele se deslumbrava com as cores e os sabores dos doces da confeitaria da família, onde nasceu e cresceu: “Quem inventou essa delícia?”. O mestre-confeiteiro só pensou em responder o enigma quando foi ajudar o filho a fazer um trabalho de escola sobre o descobrimento do Brasil.
— Comecei a ler com ele a carta de Pero Vaz de Caminha. Lá estava escrito que, em 24 de abril de 1500, subiram à nau dois índios com a pele dourada do sol e lhes deram o que comer. E ofereceram fartel, um doce português. Percebi que ali estava o primeiro doce comido por um brasileiro! Era uma época sem internet e tive que pesquisar em bibliotecas. Fui seguindo as pistas de cada história que encontrava — lembrou Perrella, de 60 anos, que é também professor e consultor na área.
‘Na carta de Pero Vaz de Caminha, estava escrito que, em 24 de abril de 1500, subiram à nau dois índios. E ofereceram fartel, um doce português. Foi o primeiro doce comido por um brasileiro!’
A pesquisa por receitas históricas rendeu primeiro um livro sobre a história da confeitaria mundial. Agora, ele partiu para outra empreitada e lançou “Receitas históricas da confeitaria mundial” (Ed. Senac), junto com a mulher, a publicitária Myriam Perrella. Além do desafio de escalar uma seleção de doces do todo o mundo que conquistaram corações e mentes através de gerações, foi preciso modernizar o modo de preparo. Algumas receitas somavam centenas de anos, exigindo a conversão para medidas usadas nas cozinhas atualmente. A receita original do fartel que foi servido aos índios na caravela, por exemplo, levava “oito arráteis” de açúcar. Um arrátel corresponde a 420 gramas.
— Tive que pesquisar as receitas e adaptá-las para os dias de hoje. Eu e o chef Marcelo Magaldi fizemos os doces do livro e os fotografamos. Ficou de fora o alemão baumkuchen, o bolo árvore, que precisa de uma máquina para ser produzido. dele temos apenas as imagens antigas. Não fizemos também o italiano sanguinaccio, que é muito exótico. Tem que matar um porco e colher o sangue. Depois descobri que ele é feito no Brasil, no Recife. — contou.
Na maratona açucarada, Perrella, que é proprietário da confeitaria paulistana Asti, disse que o doce que mais o surpreendeu foi o bolo Luís Filipe, que leva a bandeira brasileira. A receita, relativamente simples, contém leite de coco e queijo parmesão e é muito saborosa. Complicado mesmo foi fazer sfogliatella, que precisa de três dias de preparo:
- É um doce cheio de camadas. Pense numa massa de pastel tão fininha que você consegue ver os fios da mesa. Vou untando com manteiga e enrolando. Fica como um salame. Aperto e faço cortes de um centímetro. Imagine agora uma serpentina, que você pega o miolo e põe para fora, formando um cone. Aí recheio e ponho na geladeira. Um dia para fazer a massa, outro para rechear e o terceiro para assar. Pouca gente o faz.
O livro mostra como os povos usaram os principais ingredientes da confeitaria ao longo do tempo. No princípio, era o mel que hipnotizava paladares. No Sul da Espanha, foram achados desenhos em cavernas que representavam o homem colhendo mel em uma colmeia. Já o imbatível chocolate — o cacau era tido como fruto sagrado por maias, toltecas e astecas — fazia parte de cerimônias de matrimônio no século XII: uma iguaria amarga e apimentada, que podia ser misturada ao vinho ou ao purê de milho fermentado.
O açúcar tem sua origem atribuída à Índia, mas é provável que tenha vindo da Nova Guiné, revela o livro. "Por volta do primeiro milênio a.C., os hindus já possuíam um engenho de onde extraíam o suco da cana e produziam o açúcar cristal, usado como tempero junto com outras especiarias". Curiosamente, para os europeus que compravam o açúcar de terras longínquas e a alto preço, ele tinha poderes curativos e passaram a usá-lo com fins medicinais.
Fartel: doce português foi oferecido a índios no descobrimento do Brasil - Reprodução
O autor destaca a confeitaria de alguns países, como Portugal, que tem como carro-chefe os doces conventuais. No século XIX, no reinado de dom Afonso VI, as ordens religiosas foram dissolvidas e tiveram seu patrimônio confiscado. Para sobreviver, conventos e mosteiros passaram a se dedicar à produção de doces. Revoltados, religiosos passaram a batizar seus produtos com nomes relacionados a queixas e confissões amorosas: beijinho, bem casado, sonho, suspiro. Houve ordens que se inspiraram no seu próprio repertório e criaram o pudim do abade, manjar do céu ou o bolo da abadessa. E até as que apelaram para sátira: sopapo, barriga de freira e baba de moça. A tradição dos doces feitos com gemas também vem dos conventos: as freiras usavam as claras para engomar as roupas.
Alguns doces têm sua origem reivindicada por mais de um país. É o caso do francês crème brulée. Na Inglaterra, é chamado de Cambridge burnt cream. Na Espanha, é crema catalana e pode conter limão ou laranja. A primeira receita foi encontrada em um livro escrito por François Massialot (1660-1733). O cozinheiro francês costumava ser contratado por duques e marqueses. Apesar de alguns doces nos remeterem de imediato à sua nacionalidade, como os brioches e os pastéis de Santa Clara Perrella diz que a globalização mudou completamente o senso de identidade:
— Sabe quem ganhou o concurso mundial de confeitaria de 2015? O Japão. E com massa folhada. O confeiteiro fez um doce com uma facilidade absurda e ficou muito bom.
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