segunda-feira, 27 de julho de 2015

Tirania da beleza nos campos levam ao desperdício de toneladas de alimentos

                          
 
Reportagem da consagrada jornalista Hilka Telles, de O Dia, deste domingo (26/7), traça uma radiografia trágica em relação ao que acontece nas regiões produtoras do estado do Rio de Janeiro, motivada há anos pelas redes de supermercados e pelos consumidores que ignoram o mal que fazem ao preferirem frutas e outros alimentos "bonitinhos", ao invés de comprar mais e por menos. Deputado e secretário estadual de Agricultura quer acabar com essa "onda" maléfica, como foi feito na França.

No estado do Rio de Janeiro, mais de meio milhão de pessoas vivem abaixo da linha da extrema pobreza, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). É uma pobre gente que não tem sequer o essencial à vida, o direito à alimentação. Na contramão dessa dura e triste realidade está o inimaginável: por ano, 382.717 toneladas de frutas, legumes e verduras são descartadas ainda no campo (média de 25% da produção total). O principal motivo para o descarte é uma afronta a cada um dos milhares de seres humanos que amargam a miséria dia após dia. Os alimentos apenas não estão dentro dos padrões de boa aparência exigidos pelo mercado de consumo.

A produção anual é de 1,148 milhão de toneladas, segundo informação da Secretaria Estadual de Agricultura (quantidade destinada à comercialização). Produtores garantem que a perda no campo está entre 20% e 30%. Trabalhando com a média de 25% de perda, significa que a produção total no estado é de 1,530 milhão de toneladas de frutas, legumes e verduras. Esses números não consideram uma outra conta que nunca fecha: a do descarte nos setores de abastecimento e o mau uso dos alimentos pelos consumidores, que representam muitas toneladas a mais nesse mar de desperdício.

A situação é tão alarmante que o secretário estadual de Agricultura, Christino Áureo, vai propor uma lei contra o desperdício, a exemplo do que já ocorre na França. “Vou fazer uma consulta pública. Temos que elaborar propostas de educação sobre o tema, que vão abranger questões de produtores, intermediários e consumidores. A lei será apresentada em até um ano”, revela Áureo.

Durante um mês, num levantamento inédito, O DIA acompanhou a cadeia de produção e abastecimento em municípios do Estado do Rio, percorrendo o caminho do desperdício desde o campo até a mesa do consumidor. A partir de hoje, exibirá em oito capítulos o drama que se repete com os mesmos percentuais no mundo inteiro.

Somente no Brasil, segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), perdem-se por ano sete milhões de toneladas de frutas e seis milhões de toneladas de hortaliças, por contaminação ou simplesmente porque estão feios.

Numa única plantação em São José do Vale do Rio Preto, na Região Serrana, semanalmente quase duas toneladas de chuchu são abandonadas na terra, onde apodrecem. E em apenas uma das dezenas de lojas de frutas na Ceasa de Irajá, a mais importante central de abastecimento da capital, diariamente uma tonelada mamões tem o lixo como destino. Em nenhum dos dois casos acima os produtos estavam impróprios ao consumo.

Provavelmente, entre os milhares de cidadãos que passam necessidades alimentares no Estado do Rio de Janeiro, há uma parcela que nunca pôde sentir na boca o frescor de um morango maduro. Enquanto isso, na plantação dos irmãos Dacir e Gerson Condac, em Nova Friburgo, 3.200 quilos da fruta viram adubo, todo ano, embora conservem intactos o sabor e os nutrientes. Os agricultores são apenas um exemplo do desperdício que brota no solo fluminense.

Dacir, de 66 anos, e Gerson, de 58, trabalham na lavoura desde crianças. Localizada em Campo do Coelho, a propriedade deles é responsável pela produção de morango, tangerina, vagem, jiló, abobrinha e brócolis. A principal agricultura é a de morango, cuja safra se estende de janeiro a setembro.

“Colhemos cerca de quatro toneladas de morangos por semana. Nos cinco meses de safra, o total é de 80 toneladas. Perdíamos 20% (16 toneladas), porque a fruta não obedecia aos padrões estéticos necessários para comercialização — não cresceu o suficiente ou partes de sua casca foram danificadas pelo frio e pelo vento”, ressalta Dacir.

Há cerca de dois anos, o agricultor vislumbrou uma alternativa para diminuir o prejuízo e o desperdício. “Vendo o quilo por R$ 10. Dos 20% que eram descartados, agora consigo negociar com empresas que produzem polpa de frutas para suco e geleias. O quilo do descarte é vendido por R$ 5. Mesmo assim, ainda temos perda. Dos total do descarte, ficamos com uns 20% encalhados”, contabiliza Dacir.

Ou seja: o descarte total era de 16 toneladas em cinco meses. Dessas, o produtor passou a comercializar 12,8 toneladas para a confecção de polpa e geleia (80% do descarte). Isso significa que são desperdiçadas 3,2 toneladas de morangos.

“Perco de 20% a 30% de tudo o que produzo”, lamenta Gerson Condac. Em sua plantação de tangerina pocã, nada menos que 600 quilos da fruta são desperdiçados. A perda é porque ou está fora do padrão ou porque caiu sozinha do pé. “Se cair do pé, é sinal de que já está madura. Até chegar à Ceasa, passou do ponto. O freguês quer vitrine. Então, não consigo vender. Largo aí na terra para virar adubo”, afirma Gerson, que cuida de 400 pés de tangerina.

Ao lado das terras de Dacir e Gerson, visitada por O DIA em junho, havia uma plantação carregada de pimentões. Eram 25 mil pés da hortaliça. Muitos já estavam vermelhos ou no processo de amadurecimento, e a maioria era de tamanho muito pequeno, completamente fora dos padrões para comercialização. Outros apresentavam uma ou duas marcas de fungo no topo, próximo ao caule em que o pimentão se prende ao pé.

“O dono dessa plantação é José Vanderlei. Ele plantou e fez a primeira colheita. A segunda colheita deu fungo, e a maioria nasceu fora do padrão. Vanderlei abandonou a plantação e nem quis tirar os pimentões. Seria trabalho e dinheiro jogados fora, pois o produto não poderia ser vendido mesmo. Semana que vem ele vai jogar herbicida para matar os pés de pimentão”, contou Dacir, que não tem noção de quantas toneladas foram produzidas no vizinho.

A equipe de reportagem entrou na plantação e colheu várias amostras. Todos que estavam em tamanho inferior ao padrão ou ‘com defeito’ (torto, por exemplo) eram perfeitamente utilizáveis. Mas foram reprovados porque estavam pequenos ou feios. Os que estavam com fungos, bastaria cortar a parte superior e utilizar o restante (pelo menos 90% do pimentão seria aproveitado).

CHUCHU TEM QUE TER 20 CM
Um exército de miseráveis poderia fartar-se na plantação de Vanda Maria dos Santos, em São José do Vale do Rio Preto, município a 130 quilômetros do Rio de Janeiro. Resultado de uma perda de 30% da produção — porque o produto não atende ao alto nível de exigência do consumidor —, em semana quase duas toneladas de chuchu são atiradas na terra, sob as parreiras. Os números assustam mais ainda quando a matemática engloba os 30 dias do mês: o descarte é de 7,8 toneladas, que se transformam em adubo.

Vanda tem 50 anos e é meeira na vasta plantação: o dono das terras permite que ela plante e tenha todo o trabalho, enquanto ele fica com a metade do que é produzido. A despesa dele é dividir com a agricultora os gastos com fertilizantes industriais. Vanda trabalha com o sobrinho Jonas dos Santos Félix, de 28 anos. Ambos começaram a trabalhar na lavoura aos 8 anos de idade e têm pouquíssimo estudo.

“Na plantação são colhidas 200 caixas de chuchu, por semana, com 23 quilos em cada caixa”, explica Vanda. O que dá 4.600 quilos de chuchu por semana, aptos à comercialização. A perda na produção, segundo ela, é de 20% com chuchu defeituoso e 10% com os que ficaram graúdos demais. Portanto, a produção foi de 6.570 quilos por semana e se perderam 1.970 quilos (quase duas toneladas).

Enquanto Jonas colhe os chuchus nas parreiras, o chão vai ficando coberto do legume. O rapaz arranca do pé e já vai jogando na terra batida os que não podem ser vendidos. O legume cresce demais quando fica escondido entre as folhas e passa do ponto certo de colheita. O chuchu considerado padrão tem que medir uns 20 centímetros, no máximo, e ter a casca lisinha.

Tomate jogado fora para manter preço

Sebastião Hudson Filho, de 52 anos, é um ‘big shot’ do tomate em Paty do Alferes, município responsável pela maior produção do fruto no estado. Ele revela que, em 2014, jogou fora nada menos que 10 mil quilos de tomate.

A matemática é a seguinte: o agricultor produziu duas safras no ano, que lhe conferiram para venda 2.500 caixas de tomates, com 20 quilos cada. O total foi de 50 mil quilos do fruto (50 toneladas). De cada tonelada de tomate posta à venda, o agricultor afirmou que 300 quilos apresentavam imperfeições, inviabilizando a comercialização. Total de 15 mil quilos.

“Além disso, tive que separar mais 10 mil quilos de tomates esteticamente perfeitos, que não tiveram a Ceasa como destino. O preço de venda estava baixo e optei por não vender toda a safra boa, para evitar que o valor caísse mais ainda”, explica. Portanto, o agricultor colheu 75 toneladas (75 mil quilos).
Dos 25 mil quilos separados (15 mil de tomates feios e 10 mil de tomates bons), Sebastião conseguiu negociar 15 mil quilos com uma fábrica de massa de tomate. O resultado dos cálculos mostra que Sebastião jogou fora 10 mil quilos de tomates aptos ao consumo humano.

Na mesma Paty do Alferes, a cobrança pelo padrão do produto também faz o médio produtor Eliomar Vieira, de 47 anos, perder 30% de toda a safra de tomate, pimentão, pepino e vagem. “Quando nascem com defeito ou fora do tamanho padrão, não posso comercializar”, conta. Eliomar não quis falar em números absolutos, mas o fato é que um terço de sua produção, que poderia encher milhares de barrigas vazias pela pobreza, vira ração para os bois que ele mantém em sua propriedade.

Pequeno fungo condena as verduras

Saindo de Friburgo e entrando numa torturante estrada a caminho de São José do Vale do Rio Preto, a equipe de reportagem passou por campos e mais campos de verduras, com seus deslumbrantes tons de verde que se estendiam na amplidão das colinas.

Mas também havia áreas de agricultura familiar margeando a estrada. Numa delas, o ‘tapete’ de folhas de alface sobre a terra agredia os olhos e o bom senso. Folhas que poderiam estar na mesa de alguns dos milhares de famintos que existem no território fluminense. Porém, estavam ali, largadas para virar adubo.
A plantação era de Sônia de Moraes Faria, de 53 anos, pequena agricultora de alface, espinafre e cebolinha na localidade Santa Rosa, em Teresópolis. A plantação de alface lhe rendeu 36 caixas com 18 pés em cada caixa (total de 648 pés). Segundo ela, o desperdício foi de 20%. Ou seja: plantou 810 pés de alface e jogou fora 162 molhos (o equivalente às folhas descartadas).

“Quando a gente corta o pé do alface, é preciso tirar as folhas que ficam em volta e jogar fora. Elas têm sempre um furinho, um rasguinho, uma coisa assim. A gente retira para ficar apenas com as folhas que estão por dentro, bem verdinhas”, explica, enquanto vai retirando as folhas e jogando ali mesmo, sobre a terra de onde os pés de alface acabaram de ser cortados.

A pedido da reportagem, Sônia juntou algumas folhas, fez uma espécie de molho, segurando-o numa das mãos. Na outra mão, o pé de alface que seria levado para a venda. Ambos eram praticamente iguais. O desperdício era simplesmente por questão de estética, não por valor nutricional.

Ao lado da plantação de alface estava outra de cebolinha, com 320 molhos perdidos. Deu fungo na cebolinha. Sônia precisava ter colocado remédio a tempo de impedir a propagação do fungo e aguardar um mês até o produto estar apto para o consumo. Mas ela não teve dinheiro para o remédio e perdeu toda a colheita.

“Eu vi que era preciso colocar o remédio, mas não tive como comprar para aplicar”, lamenta. O fungo age na ponta da cebolinha. A aparência é de folha queimada, seca. Sônia passa seus produtos para um atravessador, que os revende na Baixada Fluminense e na Região dos Lagos.

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